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Saúde mental nas organizações: quando a lei encontra a realidade humana


* Por Rachel Goldgrob, Claudio Gianordoli Teixeira e Claudio Guimarães


Saúde mental nas organizações: quando a lei encontra a realidade humana


Como a nova regulamentação brasileira está transformando a abordagem corporativa da saúde mental – e por que isso representa tanto uma obrigação legal quanto uma vantagem competitiva?


Em 2019, a Organização Mundial da Saúde reconheceu oficialmente o burnout como fenômeno ocupacional. Cinco anos depois, vemos as consequências dessa mudança: um aumento de 68% nos afastamentos por transtornos mentais no Brasil, segundo dados do Ministério da Previdência Social divulgados pelo g1.

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Não é acaso, é o reflexo de um mundo que finalmente parou de fingir que o sofrimento psíquico no trabalho não existe.


Nesse contexto, a NR-1, norma regulamentadora que passou a exigir que organizações mapeiem, avaliem e previnam riscos psicossociais no ambiente de trabalho, vem mexendo com o mundo corporativo e exigindo dos profissionais de Recursos Humanos uma atenção especial não apenas para adequar suas organizações às novas regras, mas, principalmente, para transformar estruturas, criar culturas mais humanizadas e saudáveis.


Mas antes de nos aprofundarmos nisso, precisamos dar uns passos atrás e entender o cenário em que nos encontramos…



O mundo que adoece antes do trabalho


Vivemos uma era marcada pela hiperprodutividade, pela autocobrança e pela busca de superação constante de nós mesmos, o que tem produzido, no mínimo, um quadro de esgotamento generalizado. Tentamos evitar qualquer desconforto, anestesiando o sofrimento com distrações, dopamina rápida e uma positividade forçada.


Nesse contexto, fenômenos como as bets – as apostas esportivas online – crescem porque oferecem alívio rápido. Muitas vezes, porém, aprofundam compulsões, ansiedade e endividamento.


Junto a isso, temos o “mundo mágico das redes sociais”, onde todos parecem estar bem, felizes, produtivos, enquanto, por dentro, muitos vivem deprimidos, ansiosos e cada vez mais em suas bolhas. Esse contexto paradoxal é descrito pela pesquisadora Sherry Turkle, do MIT, como alone together”: hiperconectados digitalmente, mas profundamente solitários – uma condição que já podemos descrever como epidemia da solidão.


Além de tudo isso, uma nova camada de insegurança se impõe: os impactos emocionais da inteligência artificial. Ela reorganiza relações, ameaça empregos e amplia o sentimento de incerteza. Soma-se a tudo isso a ansiedade climática, que afeta cada vez mais pessoas.

Ou seja, é muita coisa. E tudo ao mesmo tempo!


Diante desse cenário, é impossível dizer que as organizações estão isentas – até porque elas não existem no vácuo, são parte de um sistema maior, de um modelo de sociedade que produz esses adoecimentos.


Ao mesmo tempo, porém, é claro que as empresas não podem resolver o problema sozinhas; o que elas podem é agravar ou amenizar o sofrimento psíquico de seus colaboradores.


Afinal, se sobrecarga, pressão ou ausência de suporte estão adoecendo pessoas, isso não é mais só uma questão legal, mas também ética.



As leis de apoio e o mapeamento do que é invisível


Em seus estudos sobre determinantes sociais da saúde, o pesquisador britânico Michael Marmot demonstrou que o local de trabalho é um dos principais preditores de bem-estar mental. O Brasil está aplicando essa ciência na prática, criando um arcabouço legal que pode servir de modelo para outras nações.


A reformulação da Norma Regulamentadora nº 1, por meio da Portaria MTE nº 1.419/2024, fez algo que poucas regulamentações no mundo fizeram: tornou a identificação dos riscos psicossociais uma obrigação legal explícita. Esse é um reconhecimento de que fatores como sobrecarga de trabalho, falta de autonomia e ambientes tóxicos são tão perigosos quanto máquinas sem proteção.


A nova NR-1 obriga as empresas a incluírem esses riscos no Programa de Gerenciamento de Riscos (PGR), com prazos claros para adequação, uma mudança que redefine prioridades e exige das organizações uma revisão profunda de práticas, lideranças, culturas e estruturas.


Na prática, para se adequar à nova regra, as empresas precisarão criar processos claros e ter registros consistentes. Além disso, implementar o PGR de forma efetiva significa organizar informações sobre exposição ocupacional, definir prioridades preventivas e criar uma linha do tempo confiável para avaliar nexos causais, fortalecendo tanto o cuidado com o colaborador quanto a proteção jurídica da empresa.


Paralelamente, a Lei nº 14.457/2022 – o Programa Emprega + Mulheres – reforça a criação de ambientes livres de assédio e discriminação. E o Tema 125 do Tribunal Superior do Trabalho expandiu a proteção, garantindo estabilidade acidentária mesmo quando não há afastamento formal, desde que comprovado o nexo causal com o trabalho.


Tudo isso tem um potencial imenso de promover grandes transformações nos ambientes de trabalho. Mas adequar-se a essa nova realidade traz desafios práticos:

  • Como mensurar o que não deixa marcas físicas?

  • Como documentar o impacto de uma liderança tóxica?

  • Como quantificar o efeito de metas inalcançáveis na saúde mental de uma equipe?

A resposta está na integração de dados.


Estudos da consultoria Deloitte mostram que empresas que monitoram e correlacionam indicadores de engajamento, absenteísmo, turnover e performance com fatores ambientais conseguem identificar riscos psicossociais de forma mais precoce e assertiva.


Ou seja, cabe às organizações buscar um novo olhar sobre o nexo causal. Não basta mais esperar alguém adoecer para investigar a origem do adoecimento. A prevenção precisa ser parte do protocolo, e a documentação deve ser encarada como ferramenta de cuidado, não apenas de defesa jurídica.


O processo começa com avaliações sistemáticas dos riscos psicossociais, criando uma linha do tempo confiável que conecte exposições a possíveis consequências; envolve integrar dados de prontuários, Atestados de Saúde Ocupacional (ASOs), registros de exposição e indicadores de clima organizacional; e, principalmente, dar voz aos trabalhadores na identificação desses riscos. A nova NR-1, inclusive, torna isso obrigatório.


As soluções para além das salas de descompressão


O mundo corporativo aprendeu, muitas vezes de forma dolorosa, que investir em amenidades não resolve o problema estrutural do adoecimento mental.


O Vale do Silício é um exemplo claro: empresas como Meta e X (antigo Twitter) investiram milhões em academias, escorregadores coloridos e terapias no ambiente de trabalho, mas continuaram a registrar índices alarmantes de burnout. O problema não estava na falta de recursos, mas em uma cultura que normalizava jornadas exaustivas e a glorificação do esgotamento.


O que realmente transforma ambientes de trabalho é a segurança psicológica. Estudos do Google (Project Aristotle) e análises longitudinais da McKinsey mostram que equipes com alta segurança psicológica são mais eficazes, colaborativas e capazes de inovar – além de conseguirem identificar falhas antes que se tornem crises.


Além disso, no livro Descartes' Error, o neurocientista António Damásio explica que emoções e razão são profundamente integradas, e que estados emocionais moldam diretamente nossa capacidade de julgamento e tomada de decisão. 


Ao mostrar que pacientes com lesões cerebrais que afetam respostas emocionais tomavam decisões ruins ou imprudentes, ele evidencia como ambientes que ignoram o bem-estar emocional podem prejudicar o desempenho cognitivo.


Nesse contexto, a área de saúde ocupacional precisa deixar de ser um setor isolado e se integrar plenamente às estratégias de pessoas e cultura. Essa integração reflete a compreensão de que a saúde mental é multifatorial e determinada tanto por fatores individuais quanto organizacionais. E, mais do que nunca, deve ser uma prioridade estratégica.



Caminhos para o futuro e a humanização como vantagem competitiva


A convergência de tecnologia, regulamentação e consciência social está criando um novo paradigma. Aplicativos de monitoramento de bem-estar, inteligência artificial para detectar padrões de estresse em comunicações corporativas e wearables que alertam sobre sobrecarga fazem com que a fronteira entre cuidado e vigilância esteja se redefinindo.


Pesquisadores do Stanford Digital Civil Society Lab alertam que o uso dessas tecnologias no ambiente de trabalho pode criar novas formas de vigilância, pressão e discriminação, mesmo quando apresentado sob a promessa de promoção do bem-estar. O verdadeiro desafio será usar esses recursos para empoderar colaboradores, não para controlá-los ou puni-los.


Quando bem orientada, a tecnologia pode ser uma aliada importante na construção de ambientes mais saudáveis. Mas, para isso, ela precisa estar inserida em uma estratégia maior, guiada por valores humanos, ética e propósito claro.


O que temos pela frente é, portanto, a oportunidade de criar um modelo de trabalho que seja produtivo e humano.


A NR-1, a Lei 14.457/2022 e o Tema 125 do TST criam um framework único no cenário internacional. Empresas que conseguirem navegar essa transição com autenticidade – equilibrando performance com bem-estar, compliance com cuidado genuíno – estarão definindo o futuro do trabalho.


Voltemos ao início: a OMS reconheceu o burnout como fenômeno ocupacional em 2019. Cinco anos depois, estamos aprendendo que a resposta não está em tratar os sintomas, mas em transformar as causas. Organizações que compreendem isso hoje estarão à frente amanhã.


Mais do que isso, a questão hoje já não é mais se devemos ou não investir em saúde mental, mas, sim, como fazer isso de forma estratégica, efetiva e genuinamente humana. As empresas que conseguirem responder a essa pergunta cumprirão a lei e ainda criarão ambientes onde as pessoas prosperam.

Isso passa por:

  • Tratar dados de bem-estar como indicadores estratégicos – não apenas compliance;

  • Treinar lideranças para criar segurança psicológica real;

  • Integrar saúde mental aos processos de negócio;

  • Usar tecnologia para empoderar colaboradores, não para controlá-los

 

O futuro pertence às organizações que conseguirem ser simultaneamente produtivas e humanas. Não é mais uma escolha entre performance e bem-estar, mas de entender que uma alimenta a outra. Porque, no final das contas, empresas são feitas de pessoas. E pessoas merecem ambientes que as façam crescer, não adoecer.

 
 
 

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